Em contraponto ao fetichismo da música consuma-se uma regressão da audição. Com isto não se pretende significar um regresso do auditor isolado a uma fase anterior do seu desenvolvimento pessoal, nem também um abaixamento do nível colectivo, pois que hoje a comunicação de massas atinge musicalmente, pela primeira vez, milhões de auditores que não se podem comparar com as audiências do passado. O que regride é, sim, a audição contemporânea, retida na sua fase infantil. Os sujeitos que escutam música não só perdem, com a liberdade de escolha e a responsabilidade, a capacidade de conhecerem conscientemente a música, coisa que desde sempre foi apanágio de grupos restritos, mas sobretudo recusam obstinada e liminarmente a possibilidade desse conhecimento. Flutuam entre um esquecimento generalizado e súbitos mergulhos no reconhecimento; ouvem de forma atomística e dissociam o que ouvem, embora com a dissociação desenvolvam certas capacidades, cuja apreensão é mais adequada aos conceitos do futebol e da condução de automóveis do que aos conceitos estéticos tradicionais. Não são crianças, como por exemplo esperaria uma concepção que assimilasse o novo tipo de auditores à introdução na vida musical de camadas sociais anteriormente estranhas à música. São, sim, acriançados: o seu primitivismo não é o dos não desenvolvidos, mas o dos que foram forçados a uma regressão. Manifestam, quando a oportunidade lhes é dada, o ódio contido de quem realmente pressente o outro, mas o rejeita, para poder viver em paz, e que, por isso, preferiria erradicar de vez a impertinente possibilidade. É esta possibilidade presente, ou melhor, mais concretamente, a possibilidade de outra música, de uma música oposicional, aquilo de que se regride. Mas regressivo é também o papel que a música de massas contemporânea desempenha no lar psicológico das suas vítimas. Não são apenas afastados de músicas mais importantes, são, sim, confirmados na sua estupidez neurótica, independentemente da forma como as suas capacidades musicais se comportam relativamente à cultura musical específica das anteriores fases sociais. A identificação com as canções da moda e os bens culturais vulgarizados acusa a mesma síndrome que aquelas faces das quais já não se sabe se o filme se alienou da realidade ou se foi a realidade que se alienou do filme: escancaram a boca informe com dentes brilhantes num voraz sorriso, enquanto lá em cima os olhos cansados vagueiam tristes e aturdidos.»
Sobre o carácter fetichista na música e a regressão da audição, de Theodor W. Adorno
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